sábado, 21 de outubro de 2017

Diário de bordo de Caio Jade

“Somos (...) imortais mesmo que em memórias esquecidas”
(“Oração à vitória” - Baco Exu do Blues)


Foi há poucos anos, e não poderia ser diferente dada minha pouca idade, que tomei consciência do que poderia ser a História, as Ancestralidades. Enquanto caminhava em uma rua de Santo Amaro, em São Paulo, percebi que os passos que eu dava, onde eles cortavam e cruzavam com meu corpo presente, muitos outros seres e histórias já haviam caminhado; percebi que o presente é prenhe de muito passado e experiência, como se o tempo e o espaço fossem feitos de diversas camadas que podemos acessar indiretamente, nas teias do inconsciente, nas percepções largas menos racionais. Memória talvez seja uma tecitura, talvez tenha mais a ver com fiandeiras do que com coleções de álbuns de fotografias guardados em gavetas; talvez ela se esconda, poética, em detalhes quase esquecidos nas poeiras do cotidiano, ou talvez ela se revele viva e ativa nas falas repetidas e persistentes daqueles e daquelas já velhos e velhas que deslocam o real ficcionando outros mundos possíveis com os quais a civilização não quis que nós nos acostumássemos; a juventude é impaciente com a velhice, talvez porque não entenda a poesia da subjetividade daqueles que já marcaram muita terra com os pés, e os rostos com o vento.
Noto nos meus risos, nas minhas lágrimas, uma fome de vida que por anos não foi possível. Olho aqueles e aquelas que se preparam para partir desse mundo e noto a mesma fome brilhando em seus olhos. Talvez a gente nunca desista, talvez a vida seja luta até o último instante. Na infância, na juventude ou na velhice, parte de nós é bicho insaciável que pulsa e sonha vencer a morte; entre desejos e cansaços, nos fazemos imortais.
Caminho pelas ruas, pelos bairros, pelos Estados do Brasil; o fio do corpo fura, corta, se entrelaça com outras tantas milhares inimagináveis malhas de Histórias. Tecidos de sentidos, de sensações, me trazem a certeza de que aquilo e aqueles que parecem miúdos precisam ser ouvidos, que é só a escuta que pode mudar o rumo das coisas e diminuir as desigualdades. A escuta pode nos levar às camadas do que já foi, do que compõe aquilo que agora é. Escuta ativa, participante, como uma fiandeira sentada ao lado da outra em uma fábrica em São Paulo no início do Século XX, como minha avó e sua irmã.

Memória é aquilo que nos veste, nos protege, nos configura, dá forma, prepara quem nós somos e para onde vamos. É presença grávida de passado, sem ser linear. É arbitrária, interpretação ao gosto das paixões, se forja em ringues no inconsciente onde não controlamos nada. Eu gosto é do que chega, do que colocam no mundo. Gosto de ouvir minha vó contando tudo que quer, ver sua fala puxando os ânimos e o resto do seu corpo magro e cheio de dores em gestos. Não tem nada a ver com realidade ou ficção, verdade ou mentira, ou com proximidade com fatos, é o melhor do teatro, como é com todo mundo - em qualquer idade -, é liberdade e subjetividade, precisa ser escutado e acolhido. Seria esse, então, um milagre na poeira do cotidiano, uma história lançada ao vento, ao mar, esquecida entre os fios do destino e que, já não mais fazendo parte do nosso consciente, vai ser parte da nossa imortalidade. Nunca me esqueço do ato epifânico da Maude, no filme “Harold and Maude” do ano de 1971 - brilhantemente traduzido como “Ensina-me a viver”, onde a senhora, já velha, ao receber um presente carinhoso do jovem por quem se enamorara, lança-o ao mar dizendo “agora sempre saberei onde ele está”.