quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

ajuntando o que faz sentido

Chegamos até aqui, três anos de trajetos celulares. Faz tempo que surgiu a vontade de ouvir histórias banais de idosas do cotidiano. E agora, nessa reta final, vão nos atravessando as faltas, o que não sabemos, e, por fim, a agonia de ter que transformar um projeto que é todo carinho e afeto em produto, porque ou é isso ou é morrer aqui, sem verba e sem tempo esse fazer tão bonito, que tem guiado os tempos. 
Por outro lado, sobram as ausências de um trabalho tão longo: porque não temos mulheres de outras organizações sociais, de tradição oral, que valorizam o passar do tempo e a sabedoria de quem viveu mais: aprender a escutar as histórias como exercício formador da identidade, do corpo no mundo, do fazer cotidiano. E assim vão se abrindo os caminhos - e que todo fazer artístico precisa também de uma roupagem de mercadoria.
Não sei porque essa alumiação só veio agora. De algum jeito é também uma sensação de estar descolada do mundo, das importâncias, de além do umbigo. Pensando nisso, convidamos Laryssa Machada para compartilhar as suas experiências e produções audiovisuais. Compartilha das experiências com idosos e com a escuta de histórias - e também das investigações sobre corpo atravessado no mundo - e esse aproximar é também grande possibilidade de desenrolar futuros, e seguir trabalhando.

Refúgio de raiz - Comunidades quilombolas do RS
Memória Viva

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

comunitária nov18


Com a incrível proposta de sair rumo à minha primeira residência artística, em novembro rumei só para a Argentina, minha primeira vez fora de território +55. Alguns meses antes me inscrevi no programa de residência Comunitaria, iniciativa do MuBAL, Museu de Belas Artes de Linconl, na província de Buenos Aires em parceria com Curatoria Forense. 
Partimos 11 artistas - maioria brasileiros e todos falando um mal espanhol, ansiosos sobre comunicar-nos, mais 3 curadores. Desde a cidade de Buenos Aires, atravessamos cinco horas de trigo e soja numa reta infinita, embalados de sono e cumbia rumo à nossa primeira parada em Linconl. Três dias depois, cada um de nós artistas partiu para um dos onze pueblos para nossa experiência. Fui para Martinez de Hoz (a saber, sobrenome de notório militar do período ditatorial da Argentina, assim como seu distante parente espanhol, militar que roubou terras Mapuches onde hoje está fincado "meu" pueblo). Cidadezinha de mil habitantes - uma das maiores entre as onze. 
De antes já conhecendo meu trabalho com idosas, o delegado da cidade, algo como o prefeito, se põe a me apresentar os mais diversos idosos do lugar, que me parece a população que abunda. De fato, por só possuir ensino para jovens até 18 anos, a maioria se vai para estudar. Alguns voltam, muitos não. Inevitavelmente, surge a saudade do trem - há 30 anos, quando passava, os jovens podiam estudar em outros lugares e seguir morando em MdH, devido ao baixo custo do transporte. Hoje não há coletivos, se não possui carro é preciso ir "de dedo" a outros lugares. Também há que não sinta falta do trem: com ele, não teriam trabalho os caminhoneiros que escoam toda a produção de soja e trigo do pueblo; profissão que parece ser uma mais comum entre os homens adultos do lugar. 
É estranha a sensação de que todos te olham quando passa, e quando é real é ainda mais assustadora. Ando pela cidade, gosto da hora da siesta, ainda que o sol pareça querer colar-me no asfalto. Caminho pelos dias, como andar à deriva por uma cidade de 29 quadras? Não há pixos - nem nenhum tipo de intervenção urbana que preencham o tempo do caminhar. Me fisgam as casas vazias, são tantas, entrando em quintais sem portão para ver as casas - algumas cheias de lixo e plantas, outras fechadas sendo gentilmente envolvidas por abraços vegetais. São convidativas, e de repente me percebo em dúvida se estão vazias ou não. Todas as casas estão de janela fechada (mais tarde descubro que também de luz acesa e tv ligada) apesar do sol escaldante luminoso que faz fora. Passo a investigar as teias de aranha que estão em tudo: nas janelas, nas dobradiças, nas fechaduras. Quando começo a entrar em jardins vazios, me deparo com papoulas. Em toda MdH há papoulas, ervas daninhas. Me pergunto se tantas amapolas soltando seus aromas sob o sol quente dá canseira nas pessoas dali. 
Uma tarde de sol, catando papoulas e outros matos floridos e fugindo dos cachorros que ladravam mais, cheguei ao hogar de ancianos, na última quadra asfaltada, antes do "subúrbio", como me disse uma moradora, as casas que ficam nas ruas de chão de terra vermelha, à beira dos campos de trigo. Me pareceu um convite para entrar. Apesar da pesquisa sobre idosos, há muito não entrava num asilo. É triste que a força que se faz para não enxergar a velhice é real, e lá estavam 12 idosos, trancafiados dia e noite em uma casa. Me acolhem receosos, alguns me evitam. As que conversam comigo, peço que desenhem um mapa da cidade, recurso que usei para me aproximar de crianças e puxar assunto com os adultos. Se nos mapas das crianças abundam praças e padarias, o hogar, ausente nos mapas, é o único que as senhoras podem desenhar. Não se lembram da cidade, não são dali, não existe urbe além das paredes que limitam seus dias. É hora do jantar, prometo voltar no dia seguinte.
Voltar cria uma reação de afeto muito grande, elas me beijam, me abraçam, perguntam da minha vida, contam as histórias do passado e as dificuldades da convivência com pessoas que não possuem laços, mas são obrigadas. Sigo voltando dia após dia, e tenho ganas de levar companhia para elas, de levá-las para Buenos Aires para passear, tenho ganas. Esse desejo avança, ganha espaço, e penso o que se pode fazer em uma semana de viver em um lugar, estar, pertencer, partir e afetar. Se de um lado, a vontade de trabalhar com texto, do outro, a vontade de tentar algo novo. Me ocorre fazer lambes em tamanho natural de cada um dos moradores do hogar e espalhá-los pela cidade, com uma linha de tinta que os ligasse cada um deles ao ponto de partida, sua - provavelmente - última casa. Por questões burocráticas com a urbe - tão pequena, tão vigiada, tão podada que nem mesmo a arte de rua cabe, fui de interferir no espaço. De emergência, encontra-se uma vitrine no espaço mais próximo de um centro cultural que pode sobreviver na árida Martinez de Hoz, Independizarte. 
Depois de apresentar às minhas amigas seus duplos sorridentes, levo as outras elas para fora, para o ar, para caminhar as poucas quadras de MdH. Respiram pouco, e logo estão encarceradas de novo, mas dessa vez olhando a cidade. Vou pregando Fanny, Juanita, Irene, Virgínia, Maria Elsa, Martín, Hilda, Irma. Sorrindo através do vidro, preenchidos de pueblo, corpos velhos, esquecidos, abandonados, invisíveis flutuando na vitrine, na única esquina que fala de arte por ali. 

Venho embora atravessadas de questões, e a certeza que meu trabalho é sobre escuta, observação e incômodos.