terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Irrefreável fim: Dona Queta

Trabalhava na roça
Carpia café
Abanava café
Apanhava muito
Não era ruim não, a vida.

Aquela mulher franzina, enrugadinha, cheia de alegria que conhecemos há mais de ano está curvada sob o peso enorme do Alzheimer. A cada visita, sobra a certeza do que o fim se acerca, a decrepitude da memória, por mais triste que seja, ainda narra histórias circulares que se repetem como o disco riscado, ainda explodem as risadas, levanta as sobrancelhas já sem pêlos enquanto me olha. Já não me reconhece, mas também não me estranha. Terrível mesmo é o corpo definhando, o pé que não sara, a fome que não existe, a falta de forças para a longa jornada de ir ao banheiro e a falta do desejo de água. Afinal são 98 anos de roça, casamento e vila Franci. 98 anos que, em vão, tentamos capturar em memórias, poéticas, frames. A verdade é que nos apaixonamos pela personagem e isso não foi o bastante para nos ligar à velha.
Passei o dia atormentada com minha própria indisponibilidade, cumprindo apenas as visitas burocráticas, os saltos no tempo em que eu mesma não sinto no corpo: como se fosse ontem. Ela, por sua vez, cada vez mais pertinho do abismo indecifrável que é o fim, a morte, ou antes a loucura, a realidade paralela do tamanho das suas sinapses desgastadas. O fim tem cheiro, cor, e pesa muitíssimo, escorre pelos degraus, empesteia o ar, atrai as moscas, desbaratina quem está ao redor. 
Por mais pesar que me desperte, afinal ela está tranquila na sua jornada, cada vez mais calma; a filha, a mulher responsável por ela é quem me preocupa. Vejo um corpo exausto, envergado pela solidão e as responsabilidades, as culpas, os medos. Alguém só, em confinamento com a loucura e o fim, mantendo-se quase seca na margem na sanidade e da vida, tantas vezes arrastada pela correnteza feroz que é ser inteiramente responsável pela sobrevivência de alguém. Enquanto ela fala muito rapidamente sobre os problemas de hoje, os traumas do passado, as narrativas encantadas, não deixo de ver um arquétipo mulher sob o peso do patriarcado: confinada e sozinha, julgável, despetalada. Nessa filha, enxergo a solidão que acompanha as minhas amigas-mães. Se por um lado não nos responsabilizamos por nossas crianças, de outro negligenciamos os nossos velhos. Ávidos por juventude, sucesso, prazer, experimentamos a vida como drops, sem se dar ao trabalho de aprender com os velhos, se doar para quem não tem mais tônus para encarar a vida. Não cuidamos das pontas do nosso bando, fechamos os olhos para as dores que precisam de visita, escuta, suporte. Não queremos lidar com o fim, e cheios de birra, viramos a cara para os velhos.
No ano que minha avó nasceu, dona Queta se casou. Sei da dificuldade de minha avozinha em lidar com o mundo: tv, tablet, carnaval, whats, a falta de respeito. "Ninguém quer saber dos velhos", ela diz. Sempre jogado pelos cantos da minha cabeça, ignoro o pensamento de que se aproxima, cedo ou tarde, o dia em que será minha avozinha sentindo a vida deixar seu corpinho resistente ao tempo. Penso que tenho sorte de estar perto, mas também sei que estou tecendo minhas responsabilidades de futuro breve. 
Não descola da minha retina o sorriso que ela derramou em mim quando toquei sua mãozinha tão magra, seus olhos amarelados incógnitos. Quer comer polenta com quiabo, precisamos com certa urgência providenciar. No fim, limitadíssima no meu mundinho, só quero e posso proporcionar prazeres efêmeros, arquitetar as melhores memórias possíveis. Desejo que sobre para a Nice qualquer boa lembrança do fim de sua mãe, apesar da exaustão, apesar do cansaço. Anseio por ver a alegria delas de ver a comida ser apreciada, as estranhas ouvintes. 
Esse misterioso ofício que nos demos, de romper o cotidiano, abraçar passados e ouvir histórias.

Trabalhava na roça
Carpia café
Abanava café
Apanhava muito
Não era ruim não, a vida.