domingo, 16 de dezembro de 2018

referência é tudo, bb

Chega um momento em que as lacunas em aberto dos Trajetos soam mais como descaso do que inocência, então aqui estamos. Para a etapa final desses três anos de projeto, a urgência é parar de pensar a casa, o íntimo, o individual e abrir os olhos para a sociedade, para as necessidades coletivas, para as políticas públicas, pela vivência coletiva. 
A pesquisa que vem sendo fomentada nesses anos precisa ser transformada em material acessível não só aos idosos, mas a toda comunidade - como um verdadeiro esforço de visibilização de corpos esquecidos e existências pouco valorizadas. Assim, surge a necessidade de juntar as informações, estruturar um material que tenha formatos impresso e virtual que seja material de circulação do projeto. 

Os governos municipal, estadual e federal possuem ações sociais para atender idosos, e acreditamos que tornar públicas essas informações é tarefa #1 de Chakumbolo. A princípio, usaremos uma plataforma de mapas do Google.

A vontade de fazer uma publicação sobre o estatuto do idoso e a dificuldade de se apropriar de textos jurídicos incrementa a pesquisa sobre quem está fazendo cartilhas: UNISAL, Observatório do Idoso, OAB, Assembléia Legislativa RS, Ministério da Saúde, Tribunal de Justiça DF,  obviamente o Estatuto do Idoso e o site do Ministério de Direitos Humanos que está fora do ar - coincidência? Acho que não. Achei esse pdf acessível apenas.

Também é fundamental o contato com organizações que trabalham a permanência e ação de idosos, fontes não só de pesquisa como também potenciais parceiros para divulgação e circulação do projeto dentre os quais: Fórum do Cidadão Idoso, Portal do Envelhecimento, - verificar se esse ano acontece o fórum do idoso na Cidade Tiradentes, Jornal da 3a idade, Sesc, Conselho Municipal da Pessoa Idosa, Conselho do Idoso SP, Conselho Estadual do Idoso.

Ontem conheci os Jardins de Soraya, um instituto que promove o envelhecimento com dignidade, estivemos no espaço anexo ao hospital, com amplo espaço para eventos e que atende, entre outros perfis, idosos de classes sociais bem diferentes das personagens do Trajetos. Penso na vontade de expandir o diálogo e poder circular em outros espaços da cidade - e como é que se abre esses caminhos. 

No mais é isso / engraçado como nos últimos 3 anos é o VAI que determina meus tempos, as férias, os tempos de trabalho e esse dezembro é bem meio de tudo, quem ouviu falar de férias?

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

oroboros

Olhando para trás, Trajetos Celulares é de uma constância admirável: apesar das várias dificuldades, o grupo permaneceu, se adaptou, consegue seguir se reconstituindo, repensando, repropondo. E após quase três anos de idealizado, eu Luara, reconheço o belo percurso proporcionado pelo fomento: a possibilidade de investir não só em uma ideia movida pelo afeto de estabelecer laços com idosas, mas em um projeto de vida, Móri Zines, que vejo hoje como abertura de caminhos entre as publicações independentes. Sem esquecer os cursos que me aproximaram do inacessível e elitista mundo da arte, como me apropriar e, de fato, começar a pensar sobre o capital que circula, planejar chegar a ele. Um edital, mais do que verba, é possibilidade de desobrigar do emprego do tempo em relações  comerciais, haver estrutura e incentivo para pesquisa, criação, diálogo.

Em setembro começamos o terceiro ciclo, Conhecer idosas, reconhecer caminhos, com equipe ampliada e mais especializada, e assim esperamos alcançar o grande objetivo de tornar as histórias ouvidas até aqui públicas, aproximar o público do material produzido e, sobretudo, aproximar esse grupo diverso das questões que afetam a esfera pública do universo do idoso, o acesso  a direitos, o uso da cidade.




Após o primeiro encontro com o NCI Jardim Miriam, surgiram algumas questões e a necessidade de pensar que relação queremos estabelecer com essas idosas, como nos colocar, que questões levar em conta. Essas primeiras perguntas deram origem a essa pesquisa sobre referências de trabalhos que pensam a velhice, além de instigar questionamentos sobre que materiais queremos produzir, como queremos impactar a sociedade. Sobra a vontade de ter pernas para editar Avozine, uma publicação independente apenas com produções de idosas, abordando temas de relevância para o idoso como sujeito social. 


terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Irrefreável fim: Dona Queta

Trabalhava na roça
Carpia café
Abanava café
Apanhava muito
Não era ruim não, a vida.

Aquela mulher franzina, enrugadinha, cheia de alegria que conhecemos há mais de ano está curvada sob o peso enorme do Alzheimer. A cada visita, sobra a certeza do que o fim se acerca, a decrepitude da memória, por mais triste que seja, ainda narra histórias circulares que se repetem como o disco riscado, ainda explodem as risadas, levanta as sobrancelhas já sem pêlos enquanto me olha. Já não me reconhece, mas também não me estranha. Terrível mesmo é o corpo definhando, o pé que não sara, a fome que não existe, a falta de forças para a longa jornada de ir ao banheiro e a falta do desejo de água. Afinal são 98 anos de roça, casamento e vila Franci. 98 anos que, em vão, tentamos capturar em memórias, poéticas, frames. A verdade é que nos apaixonamos pela personagem e isso não foi o bastante para nos ligar à velha.
Passei o dia atormentada com minha própria indisponibilidade, cumprindo apenas as visitas burocráticas, os saltos no tempo em que eu mesma não sinto no corpo: como se fosse ontem. Ela, por sua vez, cada vez mais pertinho do abismo indecifrável que é o fim, a morte, ou antes a loucura, a realidade paralela do tamanho das suas sinapses desgastadas. O fim tem cheiro, cor, e pesa muitíssimo, escorre pelos degraus, empesteia o ar, atrai as moscas, desbaratina quem está ao redor. 
Por mais pesar que me desperte, afinal ela está tranquila na sua jornada, cada vez mais calma; a filha, a mulher responsável por ela é quem me preocupa. Vejo um corpo exausto, envergado pela solidão e as responsabilidades, as culpas, os medos. Alguém só, em confinamento com a loucura e o fim, mantendo-se quase seca na margem na sanidade e da vida, tantas vezes arrastada pela correnteza feroz que é ser inteiramente responsável pela sobrevivência de alguém. Enquanto ela fala muito rapidamente sobre os problemas de hoje, os traumas do passado, as narrativas encantadas, não deixo de ver um arquétipo mulher sob o peso do patriarcado: confinada e sozinha, julgável, despetalada. Nessa filha, enxergo a solidão que acompanha as minhas amigas-mães. Se por um lado não nos responsabilizamos por nossas crianças, de outro negligenciamos os nossos velhos. Ávidos por juventude, sucesso, prazer, experimentamos a vida como drops, sem se dar ao trabalho de aprender com os velhos, se doar para quem não tem mais tônus para encarar a vida. Não cuidamos das pontas do nosso bando, fechamos os olhos para as dores que precisam de visita, escuta, suporte. Não queremos lidar com o fim, e cheios de birra, viramos a cara para os velhos.
No ano que minha avó nasceu, dona Queta se casou. Sei da dificuldade de minha avozinha em lidar com o mundo: tv, tablet, carnaval, whats, a falta de respeito. "Ninguém quer saber dos velhos", ela diz. Sempre jogado pelos cantos da minha cabeça, ignoro o pensamento de que se aproxima, cedo ou tarde, o dia em que será minha avozinha sentindo a vida deixar seu corpinho resistente ao tempo. Penso que tenho sorte de estar perto, mas também sei que estou tecendo minhas responsabilidades de futuro breve. 
Não descola da minha retina o sorriso que ela derramou em mim quando toquei sua mãozinha tão magra, seus olhos amarelados incógnitos. Quer comer polenta com quiabo, precisamos com certa urgência providenciar. No fim, limitadíssima no meu mundinho, só quero e posso proporcionar prazeres efêmeros, arquitetar as melhores memórias possíveis. Desejo que sobre para a Nice qualquer boa lembrança do fim de sua mãe, apesar da exaustão, apesar do cansaço. Anseio por ver a alegria delas de ver a comida ser apreciada, as estranhas ouvintes. 
Esse misterioso ofício que nos demos, de romper o cotidiano, abraçar passados e ouvir histórias.

Trabalhava na roça
Carpia café
Abanava café
Apanhava muito
Não era ruim não, a vida.